| ARTÍCULOS |

https://doi.org/10.30972/clt.268273

CLRELyL 26 (2025). ISSN 2684-0499


OUTRAS MEMÓRIAS, OUTRAS HISTÓRIAS: ECOS DITATORIAIS NAS POESIAS DE RENATA PALLOTTINI E DIANA BELLESSI

Mariana Link Martins*

Universidade Federal de Pelotas

marianalinkk@gmail.com

Claudia Lorena da Fonseca**

Universidade Federal de Pelotas

fonseca.claudialorena@gmail.com

Recibido: 18/02/2025 - Aceptado: 19/03/2025

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar as memórias poéticas de duas escritoras latino-americanas, a brasileira Renata Pallottini e a argentina Diana Bellessi. Ambas vivenciaram entre as décadas de setenta e oitenta do século passado, em seus respectivos países, a violência e o terrorismo perpetrados pelas ditaduras militares instauradas por golpes e escreveram em versos os horrores que testemunharam. Levando em consideração que a história oficial acerca de eventos políticos e sociais de grande impacto tende a silenciar a produção de memórias de mulheres, pretende-se também destacar os testemunhos das duas poetas. Embora construam sua lírica diferentemente, uma vez que Pallottini escreve uma poesia de denúncia, explícita e direta, e Bellessi opta por uma resistência mais intimista, centrada nas experiências individuais e nos afetos como formas de enfrentar a opressão, o trabalho evidenciou que suas memórias possuem significativa importância para a elaboração do trauma deixado pelas ditaduras brasileira e argentina.

Palavras-chave: memória; mulheres; ditaduras latino-americanas; testemunho; poesia

Abstract

This article’s objective is to analyze the poetic memories of two Latin American writers, the Brazilian Renata Pallottini and the Argentinian Diana Bellessi. Both experienced, during the seventies and eighties, in the last century, in their respective countries, the violence and terrorism perpetrated by military dictatorships, established by coups, in other words, the horrors they witnessed. Taking in consideration that the official history of political and social events of great impact tends to silence the production of women's memories, it is also intended to highlight the testimonies of these two poets. Although they construct their lyricism differently, since Pallottini writes a poetry of denunciation, explicit and direct, while Bellessi opts for a more intimate form of resistance, centered on individual experiences and affections as ways of confronting oppression, the study showed that their memories hold significant importance in the elaboration of the trauma left by the Brazilian and Argentine dictatorships.

Keywords: memory; women; Latin American dictatorships; testimony, poetry

Outras memórias, outras histórias: ecos ditatoriais nas poesias de Renata Pallottini e Diana Bellessi

1. Introdução

Durante as décadas de sessenta a oitenta, muitos países latino-americanos sofreram com as ditaduras militares instauradas a partir de violentos golpes. A América Latina da segunda metade do século passado testemunhou a barbárie perpetrada pelo próprio Estado, o qual conferiu para si, em cada país, poderes para torturar, matar e censurar, além de desaparecer com todo o tipo de oposição, incluindo pessoas nesse processo. Esses horrores ainda hoje reverberam nas práticas políticas e sociais do subcontinente, embora de modo singular em cada país.

No Brasil, por exemplo, a ditadura civil-militar durou 21 anos (1964 - 1985), logo após seu fim, inaugurou-se uma tentativa de fingir que esse período não existiu ou que, então, havia sido superado, relativizando os eventos a partir da construção de uma narrativa que disseminava a ideia de que os abusos ocorriam de ambos os lados. Considerando-se que a transição democrática foi organizada ainda sob o regime ditatorial, podemos dizer que essa tentativa de apagamento se constituiu em um projeto, legando ao futuro uma ferida ainda não cicatrizada. Com a anistia, todos os algozes ficaram impunes e, mesmo com algumas tentativas de rememoração, como a criação da Comissão Nacional da Verdade,1 responsável por investigar os crimes do Estado, pouco avançamos: a ausência de justiça é a realidade dessa sociedade que vive uma espécie de amnésia imposta.

Já na Argentina, as políticas da memória foram mais efetivas, digamos, apesar de seu desenvolvimento um tanto desigual, embora de certa forma progressivo, sobretudo a partir dos anos 2000. Dessa forma, pode-se observar uma busca incansável para punir os culpados por uma das ditaduras mais cruéis, a qual se estendeu de 1976 a 1983. No caso argentino, por exemplo, o primeiro presidente do regime, general Jorge Rafael Videla, foi condenado à prisão perpétua em 2010, assim como muitos outros responsáveis desde o seu fim. Além disso, o país possui o “Dia da Memória, Verdade e Justiça”, um feriado nacional que objetiva manter a memória da ditadura na ordem do dia para que não se repita e para honrar aqueles que resistiram. Sendo assim, a maneira como cada país lidou com suas memórias ditatoriais influenciou o modo como são compreendidas pela comunidade.

No entanto, mesmo com essas diferenças significativas, tanto o Brasil, como a Argentina têm em comum, na construção da sua memória oficial sobre a ditadura militar, o apagamento de memórias das mulheres que a vivenciaram. Na verdade, o processo histórico no geral tem como característica elaborar um discurso hegemônico do qual as mulheres sempre foram excluídas em detrimento dos homens. Conforme elucida Gerda Lerner (2019, p. 275), as mulheres tiveram sua história negada e, vivendo em um mundo onde são desvalorizadas, “suas experiências carregam o estigma da insignificância”. Na literatura produzida sobre a história latino-americana e seus regimes antidemocráticos, os homens ocupam um lugar de destaque, suas considerações, memórias, testemunhos ou ficções possuem mais valor. Já a produção literária de mulheres, sobretudo as memorialísticas, não estão no mesmo patamar.

A memória, enfatiza Jeanne Marie Gagnebin (2006), não é um simples registro do passado e sim uma entidade viva e ativa no presente, que delinea identidades e estruturas sociais. Tanto que é constantemente refeita, reinterpretada e atualizada pelas novas gerações que defrontam-se com a herança do passado. Nesse sentido, a literatura atua como uma estratégia de preservação da memória, um dos principais registros das experiências que não estão fixadas como uma memória coletiva, constituindo-se, nesse caso, como arquivo da ditadura (Figueiredo, 2017). Portanto, é um mecanismo de lembrança capaz de expressar o individual e o coletivo a partir da subjetividade. Dessa forma, é também um espaço de resistência contra o esquecimento (Gagnebin, 2006). É por isso que nas últimas décadas muitas escritoras têm revisitado esse passado que ainda insiste em se fazer presente, para reescrever a história tradicional, incorporando as mulheres a esse discurso. Assim como muitas pesquisadoras e pesquisadores produzem um trabalho de recuperação dessas memórias, a fim de demonstrar sua importância para a elaboração do trauma deixado pelas ditaduras latino-americanas, como é o caso das já citadas Jeanne Gagnebin e Eurídice Figueiredo, além de Elizabeth Jelin e Teresa Basile, por exemplo, nomes referenciais dos estudos que tem por objeto a memória das mulheres.

O presente trabalho, então, insere-se nesse movimento de recuperação, visto que objetiva analisar a produção de duas poetas, a argentina Diana Bellessi e a brasileira Renata Pallottini, as quais vivenciaram entre as décadas de sessenta e oitenta do século passado, em seus respectivos países, a violência e o terrorismo perpetrados pelos regimes ditatoriais e escreveram em versos os horrores que testemunharam. Ambas publicaram diversos poemas e obras durante esse período, contemplando diferentes aspectos relacionados ao contexto em que cada uma estava inserida. De Renata Pallotini serão analisadas, neste artigo, as obras Coração Americano (1976), Cantar meu Povo (1980) e Obra Poética (1995), já de Diana Bellessi, Crucero Ecuatorial (1981) e Tributo del mudo (1982). Tanto Coração Americano, como Crucero Ecuatorial foram escritos pelas poetas durante suas viagens pela América Latina nos anos setenta, quando visitaram diferentes países. Sendo assim, entende-se que suas obras são testemunhos, as quais são construídas a partir da experiência direta das escritoras. O interesse pelas poetas se dá também pelo modo como cada uma delas constrói sua lírica. Enquanto Pallottini escreve uma poesia de denúncia, explícita e direta, Bellessi opta por uma resistência mais intimista, centrada nas experiências individuais e nos afetos como formas de enfrentar a opressão, embora em alguns poemas sua contestação seja nítida. Essas diferenças possibilitam refletir sobre as distintas construções para representar a memória, uma vez que as experiências de eventos traumáticos desencadeiam reações diversas nos indivíduos, gerando inúmeros efeitos.

2. “Desenhar com as letras coisas bravas que não podem ser ditas”

Renata Pallottini, nascida em 1931, começou a escrever poesia ainda na adolescência. Com apenas 21 anos publicou Acalanto (1952), o qual seria o primeiro de pelo menos 20 livros poéticos lançados ao longo da sua carreira. Em 2016, 5 anos antes de sua morte, publicou seu último livro, com o título Poesia não Vende. Durante a ditadura civil-militar brasileira, foi uma figura importante no cenário da resistência cultural. Transitando entre a dramaturgia e a poesia, nos anos setenta, a escritora teve peças teatrais censuradas, bem como a leitura dos seus poemas em espaços públicos proibida. Em 1976, lançou Coração Americano, sua primeira obra politicamente engajada e de oposição ao regime, a qual obteve uma recepção calorosa do público, esgotando rapidamente, ganhando uma nova edição em 1979.

Com 61 páginas e 10 poemas, Coração Americano começa com uma epígrafe. Uma frase da música San Vicente (1972), composta por Fernando Brant e Milton Nascimento: “Coração Americano / um sabor de vidro e corte”. Assim como a canção, a obra de Renata Pallottini retrata a América Latina da época, atravessada por regimes autoritários e, portanto, pelo medo. Já no primeiro poema do livro, o qual possui o mesmo título – “Coração Americano” –, é possível perceber como o eu lírico expressa o peso que é viver com medo, por isso pede ao Senhor “qualquer coisa menos isto que agora calados somos: / gente com medo” (Pallottini, 1979, p. 13).

Na segunda parte do poema, a escritora ilustra a atmosfera da época que, além do medo, era composta pelo cansaço, sufocamento e angústia. Suas palavras demonstram o vazio que muitos sentiam, pois “nem a música pode o que podia” (Pallottini, 1979, p. 17). Essa referência condiz com o que se passava no início da década de setenta no Brasil após a instituição do AI-5 (Ato Institucional nº 5),2 o qual marcou a abertura dos “anos de chumbo”, o momento mais bárbaro do regime. Desde o início, aqueles que discordavam das ideologias do governo, políticas e morais, eram considerados inimigos e assim passavam a ser perseguidos e tratados como criminosos. Nos anos de chumbo, contudo, a repressão tornou-se cruel e a tortura criou raízes como política de Estado.

O AI-5 pode ser caracterizado como um segundo golpe, que, além de cassar todas as liberdades democráticas, modificou drasticamente o cenário político-cultural da virada para os anos setenta (Hollanda, 2004). A censura, prática institucionalizada desde a constituição de 1946, e aliada da repressão militar desde o início, tomou proporções nunca vistas após 1969. Muitas das vozes que criticavam o governo militar e aquelas que iam contra os padrões morais conservadores foram amordaçadas pela censura. Sendo assim, não eram apenas os militantes políticos que sofriam retaliação, intelectuais, artistas e professores passaram a ser alvos da repressão. Centenas foram presos, interrogados e torturados, outras dezenas procuraram exílio em diferentes lugares do mundo.

Então, conforme o poema revela, nem a música, que inicialmente encontrou formas de resistir, podia ser ouvida. Ainda na mesma parte, é exposta outra face, mais cruel que a censura, a do interrogatório e da tortura: “quem há de delatar / quem há de resistir por forte e quem / sucumbirá depois de algumas lágrimas? / quem será o traidor quem o herói / a quem havemos de encontrar um dia / marcado a ouro na rua?” (Pallottini, 1979, p. 17). Além dessas, há também as faces da morte e do exílio, onde, na terceira parte, o eu-lírico diz:

Todos partiram:

os que liam

e os que escreviam.

Os que sorriam

e os que calculavam.

Os que brilhavam

e os que sofriam.

Todos foram de partida.

Mudou-se a vida.

Hoje estão vivos

os que se calam. [...]

Partiram. E no entanto

havendo gente de menos

o mundo ficou ainda mais apertado.

(Pallottini, 1979, p. 19)

Esse poema possui uma dedicatória aos “companheiros de sala”, sendo eles Almino Affonso e Plínio Arruda Sampaio, ambos colegas da escritora na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo nos anos cinquenta. Tanto Almino, como Plínio eram deputados federais pelo estado paulista em 1964 e, logo após o golpe, tiveram seus direitos cassados pelo Ato Institucional nº 1 por dez anos e ficaram exilados por todo esse tempo. Por isso a poeta dedica a eles tais versos, pois os que não estavam mortos, estavam exilados, como os seus amigos políticos.

É relevante mencionar que em sua antologia, intitulada Obra Poética e lançada em 1995, Pallottini publica alguns poemas inéditos, dentre eles um dedicado a Almino que, sob o título “Tempo de homens partidos…”, relembra o período ditatorial e a relação afetuosa que mantiveram de modo melancólico, confessando: “Você foi exilado pra fora / eu fui exilada pra dentro / você casou eu não / você voltou / eu não. Hoje / você acredita? / Eu / não.” (Pallottini, 1995, p. 432). Diferente de “Coração Americano”, que foi escrito enquanto os episódios traumáticos aconteciam, “Tempo de homens partidos…” apresenta uma reelaboração desse trauma, a partir da possibilidade que oferece a literatura (Figueiredo, 2017), pelo apelo à emoção. De acordo com Gagnebin (2006), o trauma é como uma ferida aberta, que não cicatriza. Sendo assim, é característico da experiência traumática a impossibilidade do esquecimento, por isso essa insistência em repeti-la através das palavras, como faz a poeta.

Se posteriormente Pallottini utiliza sua escrita para, de alguma forma, rememorar esse trauma, na década de setenta ela a manipula para dizer o indizível, expressão de Gagnebin (2006), e, assim, manter-se viva em tempos tão sombrios. O poema “Mensagem”, o qual foi recitado pela poeta na I Feira de Poesia e Arte de São Paulo3 em 1976 para milhares de pessoas pode exemplificar essa visão. Nele, a voz poética também narra as atrocidades daquele tempo inacabável, implorando ao seu filho que conte, no futuro, o que realmente foram os anos de chumbo. Ao pedir que suas palavras sejam inscritas na história, ela expõe a importância do registro da memória, de como o lembrar, pelas gerações futuras, pode significar liberdade.

Conta ao teu filho, meu filho,

daquilo que nós passamos;

que havia fitas gravadas,

retratos de corpo inteiro.

Conta que nos encolhemos

como animais espancados;

que respirávamos baixo,

olhos fugindo dos olhos,

as mãos frias e suadas. [...]

deixa inscritos como eu deixo

sinais em troncos de árvores,

letras em papéis esquivos

para que não escureça

esta lâmpada mesquinha [...]

Conta a quem possas, meu filho;

o que em ti forem palavras

nos outros serão raízes.

(Pallottini, 1979, p. 37)

Claudio Willer (1978) ressalta que esse poema de Pallottini apresenta o elemento motivador de toda a produção artística daqueles tempos: a escrita como um modo de sobrevivência. O crítico, também poeta, caracteriza a obra daqueles que escrevem sobre a barbárie como um ato de coragem, uma vez que implica enfrentar e sentir o horror frente ao qual, normalmente, se fugiria. Por isso, embora sejam textos que, em primeira instância, possam parecer íntimos, na verdade “remetem a questões de caráter mais geral, quais sejam a natureza e a função social da poesia como um instrumento de desrepressão interna e externa” (Willer, 1978, p. 16). Em seu livro Noite a fora, de 1978, Pallottini publica o poema “Escrever” que parece sintetizar essa perspectiva ao refletir sobre o papel da escrita poética, conforme é possível interpretar a partir dos seguintes versos: “Escrever porque viva / de passagem. Recortar silhuetas de palavras. / Desenhar com as letras / coisas bravas / que não podem ser ditas / (nem pensadas). / Escrever / as chaves. / Só depois / ver o que abrem” (Pallottini, 1995, p. 222).

Voltando ao livro Coração Americano a partir dessa noção, é essencial atentar para o “Poema da rua Maria Antônia”, o qual é um testemunho da famosa Batalha da Maria Antônia, um confronto violento, em 1968, entre estudantes de duas universidades localizadas na mesma rua, na região central da capital paulista, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP) e a Universidade Presbiteriana Mackenzie. O enfrentamento se deu por divergências políticas, visto que o campus da Mackenzie abrigava o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e a FFCL era palco do movimento estudantil de oposição à ditadura. Com tiros, bombas caseiras e rojões, a violência do confronto foi sem precedentes, ocasionando a morte de um estudante, José Carlos Guimarães. No poema de Pallottini, o eu lírico narra:

Por sobre o muro

voam bombas e garrafas incendiadas

pedras agudas e palavras duras. [...]

esta é a guerra das guerras

guerra civil dos que foram amigos.

Por sobre o muro

espio com espanto o pátio incendiado

os jovens que se atingem entre lágrimas

os feridos e os gestos e os detalhes.

(Pallottini, 1979, p. 47)

Na época do conflito, Pallottini tinha iniciado sua carreira como professora na Escola de Comunicações e Artes, no Departamento de Teatro da USP. O seu texto revela, então, a sua própria realidade, pelo menos em relação à presença no âmbito universitário. Em determinada parte do poema, conforme observa-se no trecho anterior, é citado o incêndio no prédio da USP. Além disso, a morte do estudante José também é relatada nos versos a seguir: “Subversivo e perverso / morre um jovem na rua. / Uma bala varou seu crânio perigoso / e seus braços, que ameaçavam a paz / estão inertes” (Pallottini, 1979, p. 51). Ao final, o eu lírico se coloca como testemunha dessa guerra, elucidando o seu papel doloroso de escrever sobre essas atrocidades.

O “Poema da rua Maria Antônia” não é o único da obra que aborda o papel dos jovens e dos movimentos estudantis. Em “Simposium” é descrito o clima entre os estudantes que ainda sonhavam com um país humano, onde as pessoas poderiam falar. Com encontros furtivos, em ruas tranquilas, e com as mãos tremendo, eles discutiam mais uma vez como pareciam não ser nada para aqueles a quem tudo confiaram (Pallottini, 1979, p. 45). A voz poética reflete, ainda, sobre a perseguição que sofriam: “Vestida com teus cabelos / juventude perseguida [...] / tua defesa teu medo / teu suor / o teu amor / se fez na mesa de estudo / nas greves de todo o mundo / Desnudo corpo os cabelos / agridem as convenções” (Pallottini, 1979, p. 45).

Percebe-se que o texto traz como referência a contracultura, tão representativa dos jovens daquela época. O movimento contracultural popularizou-se no final da década de sessenta como uma revolução cultural global que visava transformar a estrutura hegemônica. O imaginário e as práticas contraculturais foram propagadas especialmente pela juventude da época, tanto que, como elucida Leon Kaminski (2019), 1968 ficou conhecido como o ano do “poder jovem”, o qual ficou marcado por uma juventude que acreditou na transformação da sociedade. Muitas manifestações com diferentes objetivos aconteceram ao longo desse ano lideradas por organizações jovens e estudantis, em diferentes países e continentes, com grande repercussão nos Estados Unidos e na França.

O Brasil também assistiu a crescente onda revolucionária da juventude contestadora em seu território. Com a influência da contracultura e o período totalitário em que vivia o país, os jovens, principalmente os estudantes, organizaram um movimento massivo. Em março de 1968, realizaram um protesto estudantil no Rio de Janeiro para reivindicar melhorias nos serviços universitários, onde o secundarista Edson Luís Lima Souto foi morto pelos militares que invadiram o local do protesto. Esse foi o momento em que a mobilização estudantil se transformou em um movimento social de massa, explicam Schwarcz e Starling (2015). Dessa forma, apenas ser estudante no Brasil de 1968 já era motivo de perseguição. Mesmo assim, em 26 de junho os jovens estudantes lideraram a maior manifestação de protesto desde o golpe: a Passeata dos Cem Mil, como ficaria conhecida posteriormente, reuniu estudantes, intelectuais, artistas e religiosos no centro do Rio de Janeiro, que clamavam pelo fim da ditadura e por suas liberdades democráticas.

No entanto, nos anos seguintes, a resistência estudantil, assim como todas as formas de oposição, foi suprimida pelo AI-5. O início da década de setenta é caracterizada pela falta de opções por parte da resistência para combater a ditadura militar, a qual se fortalecia cada vez mais. Não é à toa que no poema de Pallottini o eu lírico manifesta “é tarde. / Parte.” (Pallottini, 1979, p. 45), afinal, conforme finaliza no poema, suas vidas jovens não valiam nada: “jovem morto morto morto / tu sabes e eu sei porque” (Pallottini, 1979, p. 45).

O tema da morte é recorrente em grande parte dos textos de Coração Americano. Além das passagens já expostas, no poema “Cova 1106” há menção àqueles que foram enterrados como indigentes após dar a sua vida em um tempo de impotências, poema que, sendo o penúltimo do livro, retoma o primeiro, “Coração Americano”, no qual, nos versos iniciais, o eu lírico narra como as ditaduras militares cercaram “com seus braços grossos” os países em que penetraram, usando cinzas e pedras, “armas daninhas de nenhuma identidade / mas incansáveis” (Pallottini, 1979, p. 13). Conforme já mencionado também, esse poema demonstra como o autoritarismo e a crueldade sufocavam as pessoas de modo que estas iam percebendo que não haveria ninguém para salvá-las. Por isso, Pallottini desenha com letras essas coisas bravas, retomando a metáfora da própria autora, porque o peso era gigantesco e eles não se sentiam capazes de suportar (Pallottini, 1979, p. 13).

Neste ponto em que foi citado novamente o texto “Coração Americano” é importante discutir a respeito da construção do livro. Na parte inicial de Obra Poética (1995), ao inserir Coração Americano na linha temporal de sua trajetória, a escritora afirma que a obra em questão é resultado de suas viagens pelo continente americano. É por isso que, no decorrer da leitura, percebe-se a influência de países como Bolívia, Colômbia, Paraguai e Peru. A cidade boliviana de Vallegrande aparece como subtítulo da sexta parte do poema “Coração Americano”, no qual a voz poética descreve como as colinas verdes do território possuem um “silêncio de morte” ou que ali “a morte está plantada” (Pallottini, 1979, p. 23). Já Colômbia e Peru aparecem em “Comandante”, o qual retoma a história de colonização desses países traçando um paralelo com a situação latino-americana da época.

O poema “Guarânia” apropria-se do estilo musical paraguaio lento e dramático para, assim, produzir um retrato do país que, desde 1954, era governado por uma sangrenta ditadura. A voz poética comove-se com as vidas roubadas de crianças e indígenas do país e da fronteira com o Paraná, e clama: “mate esse ditador!” (Pallottini, 1979, p. 33). O pedido, no entanto, serviria para qualquer um dos países latino-americanos que enfrentavam diferentes regimes autoritários. Segundo pode-se constatar nos versos a seguir, a autora usa o termo Guarânia para referir-se a esses lugares que, juntos, formam uma entidade de dor e sofrimento: “Guarânia da vida breve / realmente breve / totalmente breve / guarânia das crianças que morreram novas / e das que nem chegaram a nascer. / Guarânia do índio morto / no primeiro porto / do amanhecer” (Pallottini, 1979, p. 29).

Em Coração Americano, conforme destacamos, Pallottini constrói uma lírica que reflete acerca da opressão e da luta pela democracia no momento mais repressivo da ditadura civil-militar brasileira: os terríveis anos de chumbo (1968-1974). Tanto é que a leitura pública dos poemas dessa obra foi proibida até 1979 (Pallottini, 1995). Além disso, lembramos, apresenta a América do Sul da década de setenta como um território marcado pelo medo e pela morte. Porém, embora o tom de todos os poemas seja esse, o último, de nome “Vivadeus”, demonstra um certo otimismo, uma fé no futuro. Mesmo que Deus esteja morto, é preciso acreditar em seu retorno, alerta o eu lírico, independentemente de sua condição, que seja “ensanguentado / feminino, semeado / púbere, fértil, materno, / abeterno / eterno / interno”, o importante é a vinda nova de Deus, que será linda, “com a lindeza da Liberdade, / e contra-lindeza da saudade / a anti-lindeza da nostalgia, / a safadeza da alegria” (Pallottini, 1979, p. 61). O poema termina como uma despedida: “e todos os adeuses a todos os deuses / da tortura e da tirania.” (Pallottini, 1979, p. 61).

No entanto, o livro Cantar meu povo, publicado 4 anos depois, em 1980, apresenta um Brasil marcado pela fome, pela miséria e pela violência, consequências da irresponsabilidade dos governos militares que depredaram a economia do país e o tornaram um martírio. O texto que abre a obra explica o que significa “cantar meu povo”, descrevendo todas as mazelas do povo brasileiro em treze estrofes repletas de jogo de palavras, sendo a primeira e a última simbólicas para sua interpretação, reproduzidas respectivamente abaixo.

Cantar meu povo é como

aplacar as feridas de um cachorro

cachorro que sou eu,

que é ele

somos

duramente feridos na carne e no espírito.

(Pallottini, 1995, p. 261)

Cantar o povo, o meu povo: decote

rasgado a faca na garganta de quem canta

com uma fita vermelha –amor– por laçarote.

(Pallottini, 1995, p. 263)

Quando o eu lírico afirma que “sou eu, que é ele, somos”, há uma fusão entre o humano e o animal, para indicar que essa experiência traumática, de ferimentos e dores, não é isolada e sim compartilhada por todos os brasileiros. Percebe-se, nesses versos, uma tentativa de coletivização do trauma, a qual é marcada novamente no primeiro verso da última estrofe na reiteração de que o povo pertence a essa voz que canta. O “cantar meu povo” pode ser o próprio fazer artístico da poeta, a qual está cantando o seu testemunho mesmo que quem o faça possa ter a garganta rasgada.

Esse poema, escrito no período em que a anistia estava tornando-se uma realidade, é um grito de denúncia, o qual conecta a experiência individual do eu lírico à dor coletiva. Por isso, é também uma escrita de solidariedade, a qual perpassa todo o livro Cantar meu povo. Em “A pobre gente”, por exemplo, há uma súplica por justiça para as pessoas que esgueiravam-se na estrada, “entre uma pedra e outra / em pó / e medo”. Já “Buriti cristalino” é dedicado a Carlos Lamarca4 e outros que foram assassinados no vilarejo de mesmo nome, fuzilados pelo grupo de extermínio da polícia paulista, chefiado pelo delegado Sérgio Fleury, considerado por muitos o militar mais cruel do regime. Nesse, a morte dos guerrilheiros é contada com o discurso bíblico:

Ele andou por três dias

na caatinga.

No quarto dia ajoelhou

de fome.

No quinto adormeceu ao pé da baraúna.

No sexto foi encontrado

e metralhado pelos guardas.

E no sétimo

descansou.

(Pallottini, 1995, p. 270)

Para Pallottini, “a poesia lírica não se pode caracterizar apenas como pura versão de amores contrariados, de emoções individuais e privativas, ela é e tem sido, através dos tempos, denúncia, arma de combate e palavra modificadora” (Pallottini, 2012, p. 32). De fato, todos os poemas apresentados ao longo desta análise corroboram com a perspectiva da autora, afinal sua escrita de resistência representa distintos períodos da história do Brasil, passando pelos anos de chumbo, pela anistia e abertura política e pelos anos pós-ditadura, tão marcados pela tentativa de apagamento dessa violência perpetrada pelo Estado militarizado e apoiada por milhares de civis.

Percebe-se como sua obra poética é um arquivo da história da ditadura civil-militar brasileira, nos moldes da concepção de Figueiredo (2017). Mais do que isso, suas memórias revelam a perspectiva de uma mulher intelectual, a qual escolheu, mesmo com tamanha repressão e perseguição aos opositores, fazer de sua palavra escrita um ato de denúncia, um manifesto de resistência.

3. “Memória: território cuja migalha herdei”

Diana Bellessi é uma das vozes mais reconhecidas da poesia argentina contemporânea. Nascida em 1946, a poeta publicou sua primeira obra no Equador, em 1972, intitulada Destino y propagaciones. Desde então, lançou outros catorze livros de poesia, sendo o último, Fuerte como la muerte es el amor, em 2018. Com 78 anos, a poeta ainda é ativa no universo literário, participando de eventos e divulgando sua obra. Diferente de Pallottini, Bellessi não colaborou ativamente dos movimentos de oposição à ditadura militar de seu país, contudo, contribuiu com a resistência cultural argentina com seus poemas e com a brasileira participando da imprensa alternativa5 como correspondente da revista Versus,6 uma das publicações mais importantes do período, com reportagens escritas durante seu mochilão pelo continente americano na década de setenta.

Além dos textos jornalísticos, outro resultado de suas viagens foi Crucero Ecuatorial, publicado em 1981, com 21 poemas, todos sem título, apenas numerados. No prólogo de Tener lo que se tiene (2022), obra que reúne a poesia completa da escritora, Jorge Monteleone caracteriza Crucero Ecuatorial como um diário poético e isso se deve ao fato de que ao longo do livro a autora narra as experiências de sua excursão pela América, tanto que o dedica a todos que deram-lhe descanso na estrada. Já no texto de abertura, apresentado a seguir, é possível observar a tônica de todos os outros: um discurso intimista e efêmero, combinado com a observação de paisagens e culturas.

I

Algo de aquel fuego quema todavía.

La luz del sol móvil

sobre la copa de los árboles,

y mi corazón desbocado, de deseo.

Afuera, al alcance de mi mano

la fiesta.

Los tiempos verbales

amarrados, como helechos a una misma piedra.

(Bellessi, 2022, p. 145)

Outra razão para que esse seja o número um da reunião é a sugestão, a partir da passagem “Los tiempos verbales amarrados”, da permanência da linguagem, e portanto da memória, que assim é fixada no tempo. Tal premissa é explorada em todos os poemas do livro, sobretudo em “III”, o qual faz referência às Mães e às Avós da Praça de Maio e a importância de inscrevê-las “en el escueto retrato de los años” (Bellessi, 2022, p. 147). Bellessi demonstra, em apenas seis versos, quem eram as mulheres que rebelaram-se contra a ditadura argentina para encontrar seus filhos e netos desaparecidos, que mesmo com “un rictus amargo” na boca, indicando o sofrimento, elas possuíam “una mirada de fiera”, uma força e uma determinação que rachavam a estrutura daquele regime autoritário e cruel. Por isso, a voz poética junta-se a elas, “Las Locas de Plaza de Mayo”, para “despertar al vivo y al muerto” (Bellessi, 2022, p. 147).

As Mães da Praça de Maio é um movimento humanitário, conhecido no mundo todo e em atividade até hoje. Seus primeiros passos foram em 1977, quando catorze mães foram à Praça, que fica em frente à Casa Rosada (sede da presidência argentina), a fim de fazer um protesto silencioso para obter respostas pelas filhas e filhos desaparecidos. O grupo continuou a crescer, rapidamente já eram mais de 200 mulheres (Ponzio, 2010), uma vez que a repressão tornava-se cada vez mais violenta e arbitrária. Tanto que também surgiram as Avós da Praça de Maio, empenhadas em encontrar seus netos e netas, nascidos nos centros de detenção ou levados junto de suas mães, mortas posteriormente. Mães e avós, então, uniram-se pelos direitos humanos, reivindicando não apenas seus desaparecidos, mas também o fim da ditadura militar.

Os repressores responderam de dois modos: primeiro tachando-as de loucas, deslegitimando seu discurso como irracional. No entanto, não foram apenas eles que assim as viam. Conforme observou Rosiska de Oliveira (1992, p. 134), elas “eram loucas, dizia o Ditador, convicto de sua razão. Eram loucas, diziam os políticos da oposição, que criticavam sua intransigência, sua recusa de qualquer pacto, acordo ou negociação. Eram loucas, dizia a complacente Igreja argentina [...]”. As mães, contudo, ressignificaram o termo, adotando a denominação de loucas como forma de resistência. Loucas sim porque ousaram rebelar-se contra um governo antidemocrático em busca dos seus entes queridos que foram torturados e mortos, com sepultamento negado, assim como o luto dos que os amavam. Por isso, Bellessi refere-se a elas como “Las Locas de Plaza de Mayo”.

Todavia, o movimento continuou a crescer, rompendo as barreiras do território argentino e ganhando atenção internacional, mesmo com a estratégia da ditadura de silenciá-las. Sendo assim, começaram a persegui-las como faziam com seus filhos e filhas. Em dezembro de 1977, Azucena Villaflor de Devicenti, uma das fundadoras, e outras duas Mães, Esther Careaga e María Eugenia Ponce, foram sequestradas de suas casas. Fizeram delas desaparecidas. Seus restos mortais foram encontrados mais de 25 anos depois, enterrados como indigentes em um cemitério de Buenos Aires. Acredita-se que elas foram mortas durante um “voo da morte”, método que consistia em colocar as vítimas em aviões militares, drogá-las e atirá-las no mar ou em rios, nuas e ainda vivas.

No livro Tributo del mudo, publicado em 1982, Bellessi escreve um poema que pode ser interpretado como uma referência a essa prática brutal. Diferente daquele publicado em Crucero Ecuatorial, nesse a autora prefere seu estilo usual: o emprego da sutileza e das metáforas. Em “Otoño” é apresentada a paisagem da estação, caracterizando-a com diferentes árvores e pássaros. Na terceira parte, o cenário natural é atravessado por cadáveres e sangue: “Columnas de crestas jaspeadas / los sauces. / Una pareja de caraos grazna al oeste. / Rojo de los pinos / de los pájaros de pecho rojo / y de cuerpos mutilados. / Su cola lenta de espuma / el río boga / todas las sangres” (Bellessi, 2022, p. 194). Percebe-se como a paisagem é marcada, com cicatrizes, pelos corpos mutilados, que podem ser aqueles desovados do céu após a tortura. Seu sangue passa a fazer parte do rio, indicando a permanência de suas memórias na história.

Na mesma obra há o poema “Cacería”, no qual é construída uma alegoria do ciclo de violência e opressão vivenciadas pelo povo argentino durante anos, fazendo com que seja possível nos remetermos às Mães da Praça de Maio, quando a autora alude novamente à loucura.

Cruza un aguilucho

en lento vuelo preciso,

y una pareja de torcazas

lo sigue

con dementes gritos.

Se ha movido Orión hacia el oeste

y las Pléyades cayeron.

Se sacia el hambre de la noche, la zarpa silenciosa,

el pico,

y el día inicia su conquista.

Devora

la hormiga grande

a la chica.

Acosa al mundo.

Cruza un aguilucho

en lento vuelo preciso. Lleva el coro

demente de la madre, y un pichón,

o dos, en el pico.

(Bellessi, 2022, p. 202)

Assim como no anterior, a natureza observada é combinada com o contexto histórico da época. Ao escrever que um gavião, “en lento vuelo preciso. / Lleva el coro demente de la madre, y un pichón, / o dos, en el pico”, observa-se que a poeta refere-se ao movimento das Mães e Avós como um símbolo poderoso, de liberdade e coragem, características da ave que escolhe para representá-las. Além disso, com os versos “Cruza un aguilucho / en lento vuelo preciso, / y una pareja de torcazas / lo sigue / con dementes gritos”, demonstra que o clamor dessas mulheres é visto por outros como uma direção a ser seguida, premissa já apresentada no livro anterior.

A obra Tributo del mudo (1982), de modo geral, é um manifesto sobre os papéis desempenhados pelas mulheres, marcados pelos dispositivos de gênero, os quais as enquadram em determinadas funções e estereótipos. Dividido em quatro seções, sendo elas “Jade”, “Tributo del Mudo”, “Persecución del sueño” e “Nadie entra aquí con las palabras”, o livro coloca em destaque a visão de uma mulher, ou de mulheres, frente ao horror que torna-se parte da natureza, na tentativa de incorporar esse discurso à memória oficial, fixando-o por intermédio da poesia, uma escrita representativa da subjetividade.

Tal perspectiva é apresentada em “Jade” por meio de uma metáfora: a história de uma poeta chinesa, chamada Yü Hsüan-Chi, que tornou-se sacerdotisa, viajou por toda a China, teve vários amantes e foi executada por assassinato. Yü Hsüan-Chi era uma exceção à regra, afinal “escribir poesía era algo esencial en la educación y la vida social de cualquier hombre culto en la antigua China, pero no era así para una mujer” (Bellessi, 2022, p. 178). Os poemas que compõem essa seção pertencem, possivelmente, à chinesa. Conforme análise de Germán Cossio Arredondo (2008, p. 36), é a sua voz que “desplegará su habla en el contexto de un paisaje oriental atravesado por las restricciones culturales, políticas y sociales que vivían las mujeres en aquel entonces, superponiendo lo que fue la vivencia de esta poeta china con las experiencias vitales que asume nuestra autora argentina contemporánea”.

A partir da segunda parte, cujo título é o mesmo do livro, o eu lírico é alguém que presencia a Argentina da década de setenta, conforme constatou-se nos poemas “Otoño” e “Cacería”, levando em consideração os sujeitos femininos daquele tempo. Outro exemplo é “Verano”, que narra: “Todo es promesa. / Entre hileras de muertos / se abre la mañana con fulgor. / Un movimiento lento y preciso / que apunta al cielo: / vivo jaguar azul.” (Bellessi, 2022, p. 200). Identifica-se, portanto, que essa seção é atravessada pelo contexto ditatorial em grande parte de seus textos. O próprio título é um indicativo importante. O silenciamento de vozes dissidentes e a mudez forçada eram a realidade que Bellessi enfrentava enquanto o escrevia, entre 1976 e 1979. Ademais, tal perspectiva do título também relaciona-se ao impedimento das mulheres terem voz ativa, metaforizado pela poeta chinesa. Portanto, a obra é uma declaração contra ambos silenciamentos: aquele imposto pela ditadura e o outro pela ordem patriarcal.

Outro ponto crucial da seção “Tributo del Mudo” é a presença da cultura tupi-guarani. O Jaguar Azul citado no poema anterior também é conhecido por Onça Celeste e é um ser poderoso que pode acabar com toda a humanidade, pois causa os eclipses solares e lunares, portanto tem o poder de colocar o universo em total escuridão. Já no fragmento inicial de “Otoño” tem-se Mbopi, “el Murciélago Final”, outra criatura tupi-guarani, a qual possui a mesma habilidade do Jaguar Azul. A menção a esses seres mitológicos que escurecem o mundo não é por acaso, eles representam a atmosfera da época, causada por outro tipo de criatura, os homens de farda e bota. Viver o Jaguar Azul pode significar estar permanentemente em uma noite infinita, na qual existe apenas a esperança de uma nova manhã, ou seja, de um novo tempo livre da repressão. O uso do conhecimento indígena em sua poesia, reforça como a escrita de Bellessi é política, afinal são outras vozes que sofreram, por toda sua evolução, processos de silenciamento e apagamento.

Nas duas últimas partes a poeta apresenta seu ato mais político de toda a obra ao colocar em pauta a importância do amor em tempos tão sombrios como aqueles. Alguns poemas narram, principalmente, o desejo de reencontrar os afetos que há muito estão longe, por isso os sonhos do eu lírico são permeados por encontros noturnos, toques rápidos e olhares demorados. Já outros, como o reproduzido abaixo, descrevem relações que foram atravessadas pela barbárie, mas seguem íntegras, tornando possível continuar o percurso da vida, mesmo em meio a tamanha violência.

Navegábamos por un mar de arena.

El sol, espectralmente rojo teñía la aureola

de polvo que seguía a la nave. Un cielo de oro

sin una nube, sin un pájaro dándole vida.

Ella permanece erguida sobre el puente

y su sola voluntad nos impulsa en el desierto.

Hace crecer un árbol desnudo en verde

para mí. Sé que es un regalo,

una sombra clara que me recuerde

la mitad de mi origen. Después cruzamos

el umbral. El signo de su silencio

se hizo silencio: me devoró suavemente

el resplandor de lo oscuro.

(Bellessi, 2022, p. 208)

A evocação do cenário árido sugere que o percurso enfrentado pela voz poética e sua companheira é difícil, não fluido. Entende-se que essa travessia representa os anos ditatoriais, principalmente pela retomada da cor vermelha, presente em tantos outros textos de Bellessi, que simboliza o sangue e a violência. Essa interpretação também é respaldada pela ausência de vida no céu, “sin una nube, sin un pájaro dándole vida”, isto é, há apenas o silêncio imposto, do qual não há como escapar, pressuposto de todo o livro Tributo del mudo. Mesmo assim, essas figuras permanecem juntas, possibilitando, então, a dificultosa travessia por esse período implacável que foi a ditadura militar argentina.

Além disso, na mesma seção, a poeta elabora diretamente sobre a memória nos seguintes versos de um poema sem título: La memoria: / ¿territorio / cuya migaja heredé? / —He perdido la memoria. / Una aurora boreal se expande / en la seda oscura (Bellessi, 2022, p. 209). Essa disputa entre o lembrar e o esquecer expressa a dor de perder a memória, seja pessoal ou coletiva, mas também insinua que algo persiste, uma migalha pelo menos — como uma aurora boreal, frágil, mas luminosa, se expandindo na escuridão da seda. A própria obra poética da autora, de modo geral, pode ser vista como uma dessas migalhas, a qual possui a capacidade de marcar no tempo e na história a perspectiva de uma mulher que enfrentou uma época tão dolorosa para seu país, iluminando-a mesmo quando o breu parecia ser permanente.

Dessa forma, não há como negar a carga política e de resistência presente na poesia de Bellessi escrita durante os anos setenta. Seu testemunho poético, diferente de grande parte da produção sobre o período, utiliza a natureza como uma observadora dos eventos traumáticos, colocando em evidência a naturalização dos atos brutais que a cada dia tornavam-se mais banais, tanto que os rios eram preenchidos por sangue e não água. Com metáforas construídas brilhantemente, a escritora evidencia que existem diferentes formas de relatar o trauma, de dar testemunho e incorporá-lo à memória oficial.

4. Considerações finais

Pensar a poesia enquanto testemunho é uma ideia relativamente recente. Reconhecida historicamente como a representação do belo e da subjetividade, a poesia consolidou-se como uma categoria simplesmente estética. Conforme Wilberth Salgueiro (2013), a peculiaridade do discurso lírico sugere um desajuste com o preceito básico do testemunho, o qual consiste no “grau de cumplicidade entre (a) aquele que fala – a testemunha e/ou sobrevivente; (b) aquilo de que se fala – a violência, a catástrofe, o evento-limite; e (c) a coletividade representada – vítimas e oprimidos” (Salgueiro, 2013, p. 37-38).

Márcio Seligmann-Silva (2003), contudo, entende que a literatura de teor testemunhal, de modo geral, apresenta experiências traumáticas sobre um período autoritário de extrema violência, mesmo que o trauma seja apresentado a partir da esfera individual. Jaime Ginzburg (2015), em diálogo com Seligmann-Silva, afirma que o testemunho não se restringe a uma escrita direta, isenta de recursos linguísticos. O estético também cumpre um papel ético, uma vez que, se os recursos de estilização literária constroem um discurso contrário ao hegemônico, “o valor ético da narração pode justificar a incorporação de componentes artísticos” (Ginzburg, 2015, p. 6). Tanto Seligmann-Silva, como Ginzburg estão referindo-se à prosa de testemunho, porém é possível perceber, a partir de suas considerações, que a poesia também pode ser incorporada a esse conceito, pois, em muitos casos, cumpre a mesma função da narrativa.

Essa premissa pode ser identificada nas duas poetas analisadas ao longo deste trabalho. Renata Pallottini e Diana Bellessi escrevem sua poesia em compasso com o contexto em que estavam inseridas, isto é, as ditaduras militares instauradas em seus países. Portanto, sua literatura conserva essas memórias, atitude essencial do fazer literário de acordo com Renato Franco (2003). Para o autor, em tempos catastróficos ou pós-catastróficos a arte tem o dever ético de expressar uma radical indignação frente ao horror, assim como produzir manifestações com o propósito de combater o esquecimento e o recalque, desempenhando, assim, um exercício de esclarecimento. Pallottini e Bellessi assumem essa tarefa em toda a sua escrita, visto que registram lembranças e contestam a história oficial.

Enquanto a poeta argentina prefere um estilo sensorial e sutil, carregado de metáforas, jogos de palavras e referências exteriores, a brasileira elabora sua lírica de forma crua, estabelecendo um tom constante de denúncia e indignação. Todavia, ambas constroem suas obras preocupadas em manter viva a memória para que o horror não se repita. Conforme os poemas demonstram, as autoras utilizam a linguagem poética como um mecanismo de preservação da história, a qual, como já desenvolvido anteriormente, insiste em marginalizar as experiências femininas acerca de momentos políticos e sociais significativos. Daí a importância das obras de Pallottini e Bellessi. Elas inserem na memória oficial novas perspectivas, diferentes daquelas apresentadas por quem sempre fez parte da hegemonia. Suas poesias, portanto, ressignificam os discursos tradicionais.

Referências bibliográficas

Araújo, Maria Paula. (2000). A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. São Paulo, FGV.

Arredondo, Germán Cossio. (2008). Sólo cuento con mi lengua: Hablas políticas y campos en disputa en Tributo del Mudo, de Diana Bellesi, y La Bandera de Chile, de Elvira Hernández [dissertação de mestrado]. Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad de Chile. https://bit.ly/416lpvU

Bellessi, Diana. (2022). Tener lo que se tiene: poesía reunida. Buenos Aires, Adriana Hidalgo Editora.

Figueiredo, Eurídice. (2017). A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro, 7 letras.

Franco, Renato. (2003). Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. En Seligmann-Silva, Márcio (org.), História, memória, literatura (pp. 351-369). Campinas, Unicamp.

Gagnebin, Jeanne Marie. (2006). Lembrar escrever esquecer. São Paulo, Editora 34.

Ginzburg, Jaime. (2015). Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Revista Conexão Letras, 3(3), 1-6. https://bit.ly/3EHj970

Hollanda, Heloisa Buarque de. (2004). Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro, Aeroplano.

Kaminski, Leon. (2019). Contracultura no Brasil, anos 70: Circulação, espaços e sociabilidades. Curitiba, CRV.

Lerner, Gerda. (2019). A Criação do Patriarcado: História da Opressão das Mulheres pelos Homens. São Paulo, Cultrix.

Martins, Mariana Link. (2023). Mulheres intelectuais e a imprensa alternativa no Brasil do final dos anos 1970: um estudo de Versus e Almanaque – Cadernos de Literatura e Ensaio[Dissertação de mestrado]. Universidade Federal de Pelotas.

Oliveira, Rosiska Darcy. (1992). A razão das loucas. En Elogio da diferença: o feminino emergente (pp. 133-140). São Paulo, Brasiliense.

Pallottini, Renata. (1979). Coração Americano. São Paulo, Feira de poesia.

Pallottini, Renata. (1995). Obra Poética. São Paulo, Hucitec.

Pallottini, Renata. (2012). “Eu só quero fazer”. Entrevista concedida a Ieda Estergilda de Abreu. Continuum, 36, 32-33. https://bit.ly/4gNg5mW

Ponzio, Maria Fernanda Garbero de Aragão. (2010). A voz dos lenços brancos: o corpo testemunhal das Madres de Plaza de Mayo. Cadernos Neolatinos, 7, Rio de Janeiro.

Salgueiro, Wilberth. (2013). Poesia de testemunho (com doses de humor): Alex Polari, Glauco Mattoso, Leila Míccolis e Jocenir. Signótica, Goiânia, 25(1), 35-50. https://bit.ly/4i30UY4

Schwarcz, Lilia y Starling, Heloisa Murgel. (2015). Brasil: uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras.

Seligmann-Silva, Márcio. (2003). Apresentação da questão: a literatura do trauma. En Seligmann-Silva, Márcio (org.), História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes (pp. 45-58). Campinas, Unicamp.

Tanno, Juliana Kase. (2019). Massao Ohno/ Só poeticamente/ Se pode viver [dissertação de mestrado]. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. https://bit.ly/411JkN9

Willer, Claudio. (1978). Poesia. Versus, 23, 16-17.

*Mariana Link Martins possui Graduação em Letras pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel, 2019) e Mestrado em Letras pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel, 2023). Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel, na linha de pesquisa Literatura, cultura e tradução, dedicando-se a pesquisar sobre poesia feminina e feminista latino-americana. Compõe o Grupo de Pesquisa Ficção Brasileira no Século XXI e participa dos Projetos de Pesquisa Ficção Brasileira no Século XXI - intertextualidade e interdiscursividade e Publicações periódicas latino-americanas em alguns momentos do século XX. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura feminina e feminista; Revistas culturais e literárias latino-americanas; Estudos de gênero e feministas.

**Claudia Lorena da Fonseca possui Graduação em Letras Habilitação Português/Francês e Literaturas pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel, 1998), Mestrado em Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso Africanas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2004), Doutorado em Literatura Comparada pela UFRGS (2009); Pós-doutorado pela Universidad Nacional de Cuyo (UNCuyo), Mendoza-Argentina e pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Atualmente é Professora Associada da UFPel, Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Letras (UFPel) e editora da Revista Caderno de Letras. Líder do Grupo de Pesquisa Ficção Brasileira no Século XXI, coordena o Projeto de Pesquisa Publicações periódicas latino-americanas em alguns momentos do século XX. É membro do Instituto de Literaturas Modernas (ILM) e do Centro Interdisciplinario de Literatura Hispano Americana (CILHA) da UNCuyo. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada; Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africanas; Literatura Hispano-americana, com artigos publicados em periódicos do Brasil e Hispanoamerica. Atua principalmente nos seguintes temas: Literatura e História; Literatura latino-americana; Revistas; Redes; Fronteiras; Intertextualidade; Formas narrativas.


  1. Em 2011, no governo Dilma Roussef, institui-se a Comissão da Verdade, a partir da promulgação da lei 12.528, de 2011. Também foi implementada a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527, de 2011) - revogando a anterior lei 11.111, de 2005, a qual regulamentava o sigilo de informações no Brasil.↩︎

  2. O Ato Institucional nº 5 foi decretado em 13 de dezembro de 1968 e revogado apenas em 1º de janeiro de 1979. Durante esse período, o presidente podia fechar o Congresso Nacional, as assembleias legislativas e as câmaras municipais e proclamar estado de sítio; cassar todos os tipos de mandatos legislativos e executivos; perseguir e vigiar qualquer cidadão; suspender os direitos políticos pelo prazo de dez anos; confiscar bens como punição para corrupção. Também foi estabelecido que os acusados por crimes contra a Segurança Nacional seriam julgados em tribunais militares, sem direito a nenhum recurso, inclusive o de habeas corpus.↩︎

  3. Em novembro de 1976 aconteceu, em São Paulo, a I Feira de Poesia e Arte, um evento voltado para a divulgação de música, exposições e performances artísticas e, sobretudo, para a leitura de poemas e venda de livros. Idealizada por Massao Ohno, editor de algumas obras de Pallottini, inclusive Coração Americano, a Feira foi realizada no Teatro Municipal e, em três dias, recebeu mais de quinze mil pessoas. De acordo com Juliana Tanno (2019), o evento pode ser considerado o mais importante do cenário cultural paulista desde A Semana de Arte Moderna de 1922, pois além de reunir um grande público, também colocou em cena inúmeros artistas até então desconhecidos.↩︎

  4. Carlos Lamarca (1937-1971) foi um militar brasileiro que desertou em 1969, tornando-se um dos principais líderes da luta armada contra a ditadura. Fez parte do grupo guerrilheiro Vanguarda Popular Revolucionária, atuando em assaltos a banco e sequestros políticos. Foi assassinado em 1971, fuzilado pelo exército.↩︎

  5. Segundo Maria Paula Araújo (2000), a imprensa alternativa foi um movimento jornalístico e político, formado por periódicos que questionavam a ditadura civil-militar brasileira, direta ou indiretamente, a partir do ideário da esquerda, denunciando a violência e a arbitrariedade do governo autoritário.↩︎

  6. A revista Versus (1975-1979) foi um periódico alternativo brasileiro dirigido por Marcos Faerman no início do período de transição democrática. Tendo por inspiração sobretudo a revista argentina Crisis, reservou um espaço significativo para a discussão de temas latino-americanos. Seu primeiro número, por exemplo, foi dedicado à Argentina e sua situação política, com caráter explícito de denúncia. Considerando os temas que aqui discutimos, importante destacar também a abertura de sua redação à disseminação do pensamento de mulheres intelectuais, como Rachel Moreno, Renata Villas Boas e Neusa Maria Pereira, por exemplo, esta última, intelectual negra, editora responsável pelo Caderno “Afro-Latino-América”, que passou a circular com a Revista. Tratamos do tema em: Martins (2023).↩︎